OS CAMINHOS DA REVOLUÇÃO E A ECONOMIA SOLIDÁRIA
*Orlando Nuñez, sociólogo, diretor do CIPRES - Nicarágua
Uma economia solidária não pode ser concebida nem desenvolvida fora do contexto de um projeto revolucionário que lhe dê sustentação. A grande diferença, em relação às revoluções anteriores, está em que, na economia solidária, não é preciso esperar pela tomada do poder político para que os avanços aconteçam - ela mesma é parte da tomada do poder político para que os avanços aconteçam - ela mesma é parte da revolução, ela mesma é parte da transição e da construção do socialismo.
Neste artigo, gostaria de combinar e sustentar estas afirmações, fazendo um percurso conceitual e histórico das pretensões, dos sucessos obtidos e das contradições do processo revolucionário, situando-o dentro do marco do atual caminhar da economia que combina o intercâmbio de equivalência dentro das relações de cooperação e de solidariedade.
A grande diferença entre as revoluções políticas socialistas está em que as primeiras foram precedidas por uma transformação social da base da economia, enquanto as segundas esperaram a tomada do poder político e, a partir daí, tentaram criar as bases econômicas que levassem à transformação social dos países onde foram instauradas.
Efetivamente, as revoluções políticas burguesas acompanharam a universalização das relações capitalistas da propriedade e da produção: a subordinação do trabalho assalariado ao processo de acumulação do capital-dinheiro. As revoluções socialistas, no entanto, não conseguiram reverter o processo nem desenvolver o controle e a gestão do capital por parte dos trabalhadores. Na realidade, contribuíram para uma mercantili-zação da força de trabalho, pelo estabelecimento de capitalismo de Estado, pelo aburguesamento da tecno-cracia estatal, pela subordinação dos assalariados e camponeses do controle do capital-Estado. Porém, em ambas as revoluções, a forma política da mudança tem se convertido em uma necessidade. É o que analisa-remos adiante.
O fracasso do primeiro esforço socialista da humanidade não pode ignorar os ganhos e as lições de um soci-alismo de Estado, que se diferencia substancialmente do que se conhece como capitalismo de Estado. O socialismo estatal significou o confisco econômico e o deslocamento do poder político da burguesia, em prol da distribuição e do bem estar de toda a cidadania, com base em critérios diferentes dos da lei do valor, isto é, sem que o intercâmbio de equivalência estivesse à margem das necessidades populares. Outro aspecto, tão significativo quanto o anterior, é o fato de que, junto com a burguesia nacional, deslocou-se a hegemonia imperialista, guardiã, em última instância, das relações e da ordem capitalista mundial. É por isso que as revoluções políticas de caráter nacional e de orientação socialista tiveram uma expressão anti-imperialista, desde a revolução Russa até a Revolução Cubana.
A contradição e o conflito entre o marco nacional da revolução e o contexto mundial do capitalismo geraram grande parte das dificuldades para a consolidação das revoluções socialistas. O caráter desigual da guerra entre o império europeu/norte-americano e as revoluções nacionais não permitiu que se estabelecesse um modelo de acumulação auto-sustentável na maioria dos países onde ocorreram revoluções, exceto na União Soviética e na China. Mesmo ali, a competitividade econômica e os conflitos políticos com os Estados Uni-dos têm sido desfavoráveis para a construção do socialismo. Fica assim evidente o contexto internacional desfavorável por onde as revoluções de cunho nacional e de caráter político têm transitado. Trotski já havia alertado sobre esta situação, ao chamar a atenção para as limitações do que se chamou da revolução em um só país, assim como Che, quando colocou a necessidade de se criar um, dois, três, muitos Vietnãs.
Porém, o marco nacional continuará sendo uma condição necessária para se levar uma revolução adiante, já que a sociedade continua ordenada como Estado-nação: dentro de um marco territorial; com um segmento populacional; uma ou várias línguas oficiais ou oficiosas; uma moeda e um orçamento baseado nos impostos; um aparelho de repressão; um sistema político que conduz a ordem social da sociedade em questão; uma marco jurídico e leis nacionais e internacionais; um espírito de corpo, uma tradição e seus valores patrióticos; uma cultura diferenciada e sentida como própria; relações com conglomerados semelhantes, indepen-dentemente do grau de interdependência, subordinação ou dominação que exista entre as nações.
Enquanto o mercado existir e a diferenciação social decorrente também, os sistemas políticos e a disputa pelo controle continuarão sendo válidos para poder defender, afirmar ou desenvolver as pretensões de cada classe ou grupo de interesse determinado. O Estado, enquanto força organizada, administrado de forma vertical ou democrática, continuará sendo um aparelho cobiçado pelas organizações sociais e permanente-mente convertido em poder político. De igual forma, os proto-estados, as diferentes organizações com um interesse e uma cota de poder determinado, continuarão dominando a disputa pública pelo controle social, seja por meio das armas ou das urnas, pelos recursos econômicos ou pela hegemonia cultural -trate-se de partidos, grêmios, sindicatos, igrejas, movimentos sociais de peso ou de expressão nacional, grupos de pres-são ou outros.
É fato que a política hoje goza de grande desprestígio, mas pensar que a questão política não tem mais senti-do nem remédio significa ficar exposto ao parcelamento e à alienação individual. A relação de poder entre as forças antagônicas é igual a zero. Cada cota de poder em mãos do capital, do mercado ou de grupos econô-micos são cotas da fraqueza dos indivíduos excluídos e marginalizados do sistema dominante. Nós não po-demos ignorar aquelas lições e suas limitações, mais ainda depois de tudo que tem acontecido nestes dois séculos, isto é, depois das experiências das revoluções burguesas e socialistas.
O campo limitado do político para transformar a ordem capitalista necessariamente exige uma complemen-taridade simultânea com novas formas de propriedade e de produção, encarnadas no seio da sociedade civil. Para tanto é preciso que a sociedade civil enriqueça-se com um corpo de valores doutrinários que alimente e potencialize as forças produtivas humanas a favor do novo regime.
A revolução socialista terá de percorrer o mesmo caminho que a revolução burguesa percorreu a partir do renascimento: questionar a velha ordem econômica, social e política de diversas formas; incubar novas for-mas de produção; amadurecer a superioridade no seio da velha sociedade, até que a tomada do poder político seja um resultado que permita completar a tarefa. A diferença está em que o desenho e a consciência social e histórica da revolução estão mais desenvolvidos e hoje podem se converter em um fator objetivo a favor da própria revolução. Também o conhecimento tem sido potencializado como poder material e tem maiores condições de se apoiar na correlação de forças de qualquer projeto.
De qualquer forma, a necessidade histórica da revolução e do socialismo tem como ponto de partida, aquilo que eu chamaria de "crise de suportabilidade e de viabilidade" do regime atual. A principal peste do regime caracteriza-se não apenas pela exploração sem mesericórdia de homens, mulheres e crianças, mas também pela exclusão, a repressão e o extermínio físico de populações e culturas marginais. Mas, acima de tudo, porque a maioria das pessoas não suporta mais nem os custos nem os logros da civilização patriarcal, capi-talista, predadora e solidária dos nossos dias.
Neste sentido, são as próprias condições objetivas que sustentam a ordem capitalista e as opções alternativas particulares que as pessoas estão assumindo para enfrentá-la que se tornaram insuportáveis e passaram a ser os insumos para novos caminhos da revolução. A crise do sistema capitalista de hoje manifesta-se através de guerras regionais interétnicas, mostrando o nível de rebelião perante o Estado-nação e perante os novos impérios globalizadores; do comércio ilícito que compete com os planejadores das grandes transnacionais comerciais e financeiras expressa, ao mesmo tempo, a desobediência e a disfuncionalidade da ordem capita-lista mundial; da migração do Sul para o Norte que mostra a contrapartida populacional ao mercado de bens materiais e os estragos dos vasos comunicantes, que antigamente os grandes senhores do capital transnacional quiseram evitar por meio do seu modelo de "desenvolvimento- subdesenvolvimento"; das catástrofes ambientais, que mostram o limite das luta desenvolvimentista contra a natureza e a impossibilidade da acumulação infinita; da destruição da natureza que se faz acompanhar da destruição dos laços afetivos com quem está do nosso lado, submetendo-nos à mais solitária e "associal" das individualidades. Enfim, a degra-dação moral que deu sustentação ao cinismo da exploração sem limites reverte-se em uma cultura da delinqüência, sem fronteiras nem escalas sociais e que coloca em perigo a segurança de cada um, incluindo a dos senhores do desenvolvimento.
Neste sentido, o campo da política terá de continuar a agir como uma reserva de intervenção humana colegiada nos assuntos que dizem relação ao gênero humano, sem que isso impeça que cada vez façamos a nossa parte da melhor forma e sob o signo da solidariedade intersubjetiva e não sob o parâmetros das relações de dominação e de empoderamento1 social. (1 Termo adotado do inglês empowerment que aqui significaria o processo de busca e construção do poder- em geral- e do poder de decisão - em particular - dos grupos na sociedade. Nota do tradutor)
Finalmente, os limites do campo político e do marco nacional de uma revolução dificilmente podem ser resolvidos no interior da política mesma; sua superação transborda a questão política e envolve as questões econômicas e culturais da revolução.
AS FORMAS ECONÔMICAS E O MARCO LOCAL DA REVOLUÇÃO
A revolução burguesa é a única que tem identificado os interesses do sistema com os interesses do sujeito do sistema: a propriedade é privada burguesa e o sujeito da revolução e do sistema capitalista é o empresário. O desenvolvimento das forças produtivas (como instrumento da valorização do capital, através da universaliza-ção do trabalho assalariado e sob a condução individual e social da burguesia comercial, industrial e financeira), conseguiu unificar os interesses globais do sistema no seu conjunto. Tal como já foi assinalado outras vezes, o empresário burguês teve a possibilidade de trabalhar para si próprio sem deixar de lado o trabalho de consolidação e de desenvolvimento das relações capitalistas de produção. Lembremos que, no capitalismo, o burguês é o sujeito econômico que se beneficia com o sistema sem que a harmonia individual associada ao crescimento econômico em sua volta entre em contradição com a miséria que ambos geram no seio dos trabalhadores e marginalizados. Assim como também não foi contraditório o fato que, nas revoluções políticas burguesas, as mobilizações populares fossem levadas adiante e orientadas por dirigentes burguesas em fun-ção dos interesses dos empresários privados e do capital.
Nas revoluções socialistas, desde o início começa o divórcio entre o suposto sujeito da revolução - o proletariado -e a forma de propriedade e de controle do suposto sistema estatal. Nesta situação, o proletaria-do ainda tem que entregar todos os seus excedentes, toda sua mais valia para o Estado planejar e distribuir, enquanto o desenvolvimento das forças produtivas não tenha avançado o suficiente para que o trabalho deixe de ser penoso para todos. Isto é, o proletariado ainda tem que se sacrificar pelo bem comum quando este está longe de ser constituído apenas pelo bem dos proletariados. É evidente, então, o divórcio entre os interesses imediatos e estratégicos dos trabalhadores como classe que poderá gozar dos bens de um sistema suposta-mente superior.
Podemos observar a brecha que se abre entre o heroísmo político-militar das insurreições e das revoluções políticas e a desmobilização progressiva que se desenvolve durante a construção econômica do novo sistema. O valor-trabalho deixa de ser um valor espiritual e a distribuição social do novo Estado de bem-estar atenta contra a produtividade competitiva, dentro de um contexto onde a competição econômica entre Estados-nações ainda está na ordem do dia. A tentativa de resolver a contradição entre a propriedade estatal, social e o controle efetivo dos trabalhadores por meio dos soviets ou conselhos não foi além de um projeto bonito, precisamente por causa das formas salariais ainda imperantes nas relações econômicas. Os administradores no socialismo de Estado, assim como os managers no capitalismo de Estado, tiveram o mesmo papel representado pelos capitães burgueses no capitalismo da competição. A diferenciação mercantil ainda reinante não permitiu fechar a brecha entre o controle dos operários e o controle da tecnocracia ou burocracia socialista. As exceções conhecidas foram levadas a cabo com o apoio subjetivo da consciência revolucionária de dirigentes como Che.
Gostaria de trazer à discussão um fator que altera substancialmente o suposto do marxismo que se refere à generalização e universalização do proletariado enquanto sujeito da revolução e do socialismo. Nas atuais condições do capitalismo e na sua tendência dominante, podemos abservar que na verdade há uma diminuição absoluta ou relativa do proletáriado, tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvi-dos. De acordo com dados oficiais de organismos internacionais, são duzentas as empresas que controlam 30% da economia mundial, dando trabalho para apenas vinte milhões de pessoas, isto é, contratam menos de 1% da mão-de-obra do planeta. A tendência é que uma centena de firmas venha a controlar a maior parte da economia do planeta, o resto está destinado à lata do lixo do sistema capitalista globalizado.
Se considerarmos, de um lado, as limitações que as revoluções políticas socialistas têm sofrido e que finalmente têm sofrido e que finalmente levaram o modelo ao fracasso, isto é, a contradição entre a propriedade estatal e o controle operário; e se considerarmos, por outro lado, o desaparecimento aparente do sujeito marxista da revolução, surge ante nós a interrogação sobre os supostos econômicos e sociais para levar a revolução e o socialismo adiante nas atuais condições.
É aqui e neste momento, então, que nos perguntamos sobre a possibilidade de uma base econômica e um marco local, que nos permita a a companha as bases políticas e o marco nacional da revolução socialista, como já aconteceu no caso da revolução política burguesa e do surgimento do capitalismo.
Uma vez entendido que as massas populares são somente o sujeito político das revoluções socialis-tas, assim como elas também o foram nas revoluções burguesas, e uma vez elucidado o papel e as limitações da revolução política e nacional, as interrogações continuam as mesmas: quem é o sujeito da revolução social? Qual é a forma de produção que devemos começar pôr criar e fomentar?
E qual o marco onde teremos que nos movimentar? Temo que os produtores que administram a produção e os trabalhadores que geram e produzem valor serão pôr muito tempo os sujeitos responsáveis pelo funcionamento da economia, independentemente do papel que o sistema venha a atribuir a cada um deles. Da mesma forma, a propriedade, o intercâmbio e o capital são os fatores e o cenário onde os excedentes se encontram e são disputados e onde se definem a distribuição e o consumo dos bens.
Assim sendo, a resposta parece ser fácil: os sujeitos de uma nova economia terão de ser produtores que não explorem a força de trabalho e trabalhadores que não sejam explorados pôr interesses externos. Algo assim como os camponeses e os trabalhadores urbanos autônomos, que não têm empregados e cuja atividade econômica se realiza em função das suas necessidades familiares. Isto implica que estes produtores-trabalhadores têm que ter acesso à propriedade, o que aparentemente expressa uma contradição para a dou-trina socialista marxista, já que a propriedade é sinônimo de diferenciação social.
Como é sabido que, mesmo nestas condições, a existência do mercado e de grupos econômicos de maior competividades exploram de forma indireta o trabalho destes produtores trabalhadores através do comércio e da intermediação, será preciso que este sujeito se ampare cada vez mais em cotas do mercado para poder capturar os excedentes onde estes se encontrem. Como nos dias de hoje os excedentes estão loca-lizados na intermediação (crédito, beneficiamento, comércio, gestão administração), isto implica que estes produtores-trabalhadores terão de estar dispostos a controlar diretamente segmentos de capital, o que apa-rentemente representa uma outra contradição, posto que o capital na doutrina socialista marxista é sinônimo de alienação do trabalhador e do produtor.
Até aqui, aparentemente estaríamos apenas pregando a possibilidades do que é conhecido como "capitalismo popular", o que em si mesmo é uma contadição ou um absurdo, já que o capitalismo, por natu-reza. é exclusivo e excludente. Porém, para defender esta tese não precisamos recorrer ao absurdo e sim a um outro fato, que é o que faz a diferença: a associatividade dos produtores-trabalhadores para superar a inteme-diação, ao mesmo tempo em que os excedentes são socializados cada vez mais e sem abandonar necessaria-mente o caráter individual da sua produção. No caso da Nicarágua, que conheço melhor, a maior parte da força de trabalho e produtiva atualmente constitui-se de trabalhos denominados autônomos, e grande parte deles organiza-se para entrar no caminho econômico da associatividade. O ponto crucial está em que todos tenham como propósito e possam ter acesso ao controle do capital, o que em um primeiro momento somente pode ser considerado como um controle local.
Este caminho do controle econômico, local e setorial da propriedade e do capital implicaria uma outra via, diferente, embora complementar, do controle político, nacional e estatal sobre a propriedade e o capital, que nós conhecemos como modelo estatista da revolução socialista, Em outras palavras, eles não são excludentes entre si. Em uma revolução socialista, haverá empresas que pertencem ao Estado, da mesma forma em que haverá controle estatal sobre excedentes via impostos, como acontece em qualquer governo do mundo, seja este capitalista ou socialista. Mas, haverá controle setorial, produtivo, industrial ou comercial, através de empresas cooperativas ou associativas, que por sua vez, terão que pagar impostos como as outras empresas privadas ou estatais. De igual forma, e na medida em que os grupos populares tenham cada vez mais con-trole sobre cotas de propriedade e capital nas suas respectivas localidades, haverá então empresas municipais pertencendo à comunidade -tal como já acontece em muitas partes do mundo. Seria preciso agregar cotas significativas de propriedade e controle coletivo do capital, que poderão se obtidas também por meio dessas formas de autogestão, nas quais os sindicatos de empresas capitalistas, estatais ou de sociedades anônimas de trabalhadores participem na gestão em favor de seus interesses.
Noutras palavras, as revoluções políticas nacionais que conhecemos no passado cada vez mais darão lugar a revoluções sociais de caráter local ou municipal. As associassões e movimentos sociais se organizarão movi-dos pelos seus interesses imediatos e também em função do controle da propriedade e do capital para poder responder às suas necessidades. Na medida em que elas tenham um avanço no controle político local -sempre e quando seja esse o seu propósito e possam contar com uma concepção e uma estratégia de luta para alcançá-lo. A tomada do poder político e econômico também pode ser compreendida e levada adiante aos poucos, pedacinho por pedacinho, como foi feito pela burguesia nos seus primeiros balbucios, há quinhentos anos atrás. Na medida em que as organizações sociais- destas vez detentoras do poder econômico e, portanto, político - tenham como respaldo significativas cotas de poder local em cada comunidade, estarão se esfor-çando, pela associação, no poder político nacional.
Tenho certeza que este caminho vai gerar alguma polêmica, sobretudo dentro da esquerda. Não arriscaria coloca-lo em discussão se já não estivesse sendo debatido na prática em países como Cuba (como é o caso das Uniões Básicas de Produção Cooperativa -UPBC), ou na Nicarágua (como acontece nas cooperativas e nas empresas de auto-gestão dos trabalhadores) ou na China (no caso da descentralização estatal em favor das comunas, ou como acontece com mais de 500 milhões de cooperativistas no mundo inteiro ao se debate-rem com esta questão. Nunca é demais dizer que todas estas formas primitivas do que poderia ser uma socie-dade de produtores livremente associados, como Marx costumava definir o socialismo, sofrem de contradi-ções e fraquezas, produto do meio social capitalista em que elas se desenvolvem. Em relação a elas, poderí-amos dizer, parafraseando recomendações marxistas acerca das revoluções políticas que assim como tarefa dos revolucionários não é a de ficar sentados esperando ver passar o cadáver do capitalismo, também não se trata da administração passiva dos sucessos ou fracassos das formas alternativas pelas quais as pessoas colo-cam sua vida em jogo para subsistirem economicamente. Mas sim de envolvê-las na análise e de envolver-se na prática. É claro que, sem uma intervenção no rumo social da economia, nenhuma das formas alternativas terá condições de alcançar a maturidade. Por isso mesmo é que consideramos que cada forma de propriedade e de controle do valor vai precisar, cada vez mais, da sua própria Bastilha.
Quero apenas lembrar que uma discussão semelhante a esta foi desenvolvida dentro da esquerda quando se debateu sobre a participação dos partidos marxistas na democracia parlamentar, opção que nunca foi excluída nem por Marx nem por Che, independente das opções que em cada época ou circunstâncias chegaram a ser priorizadas. Nosso erro foi não ter conseguido diferenciar, para as forças populares, as restri-ções e modalidades da democracia burguesa dos objetivos democráticos, necessários à revolução socialista. O resultado disto foi que a burguesia arrancou-nos a bandeira da democracia política. Permitam-me lembrar a polêmica sobre a reforma agrária, ou sobre o acesso à propriedade da terra por parte dos camponeses indi-viduais, desde os escritos de Engels até Lênin, desde as polêmicas social-democratas até os processos de coletivação da terra nas revoluções socialistas. Nosso erro foi não ter sabido diferenciar o controle coletivo (associativo) do processo de intermediação, lugar onde se assenta, cada vez mais, o verdadeiro cenário e a verdadeira disputa pelos excedentes econômicos. O resultado disto foi que a direita soube alterar os ânimos dos camponeses, arrancar de nossas mãos a bandeira da propriedade popular e desestabilizar os processos revolucionários por meio de revoltas camponesas.
AS FORMAS CULRURAIS E UNIVERSAIS DA REVOLUÇÃO
Ao falar do Che, freqüentemente menciona-se sua ética como um exemplo regulador da conduta e da prática revolucionárias. A ética, enquanto um valor moral para os atos humanos, não é um imperativo do ser, mas do dever ser , com o qual a nossa espécie resguarda as melhores as melhores conquistas alcançadas. A capacidade de superar o ponto de chegada alcançado por cada um de nós no processo de humanização é o aspecto do humano, e os valores culturais A ética tem também um significado que se refere a certos hábitos, os quais permite-nos ter acesso á felicidade individual.
E a contradição entre essa pretendida e cobiçada felicidade individual de cada um e a forma de administrá-la em cada relação aos outros é que nos permite transitar do ser para o para o dever ser. Mas nem todos estamos dispostos a pagar os custos da superação humana para levar isto adiante.
Precisamente, a invenção do intercâmbio de equivalências e a proposta de generalização da lei do valor no mercado capitalista têm sido as propostas da modernidade para reconciliar a felicidade individual dos outros. Porém, tem sido suficiente demonstrado que através das relações capitalistas, só é possível criar riqueza criando pobreza, na mesma proporção, que tal forma que a ética capitalista só pode funcionar no interior da classe dominante, isto é no interior do intercâmbio entre iguais. Daí que a igualdade de oportuni-dades pelo controle da propriedade ou capital, ou, dito em outros termos, a democracia e econômica, trans-forma-se em um imperativo moral na selva social onde nos encontramos. Enquanto existir divisão do traba-lho, o intercâmbio econômico de valores materiais sempre será um intercâmbio desigual, e só a intervenção de valores morais é que poderá se interpor naquela relação, dando-lhe a conotação de cooperação e solidariedade.
Estas reflexões prévias têm como objetivo mostrar a necessidade de se desenhar a utopia, mais uma vez, plasmando-a em valores de referência e de conduta, de forma tal que ela possa se encarnar e se conver-ter em força material a serviço das forças humanas que lutam pela sua emancipação. Esta é a tarefa do hu-manismo na sua ânsia por reconciliar os interesses individuais com os interesses sociais, entre as partes e o todo, entre o eu e o nós. Parte desta tarefa corresponde a relações de propriedade, de produção, de intercâm-bio. Uma outra parte corresponde aos valores culturais, isto é, aquelas que contam com o consenso da socie-dade onde aquelas formas econômicas se desenvolvem.
Em um outro mundo onde imperam relações de competição e de domínio, os novos valores cultu-rais, as novas normas compartilhadas e em processo de realização prática e material têm que ser valores de cooperação e de solidariedade. Têm que decorrer de acordos, de maneira que as equivalências entre bens intercambiáveis - e que hoje se encontram submetidos à lei do valor - possam se submeter à equivalência dos gestos interpessoais. Isto pode até parecer muito abstrato, por isto gostaria de ilustrá-lo concretamente, a partir de uma experiência milenar que até hoje tem resistido e conseguido fugir às regras do mercado e, em certa medida, do domínio.
Existe uma instituição cuja experiência está regulamentada, em grande parte, pelas regras da coope-ração e da solidariedade e, graças a isto, a espécie humana tem conseguido sobreviver: refiro-me às relações entre pais e filhos no interior da família. Não poderiam imaginar dado o grau de vulnerabilidade das crias humanas e dada a forma de remuneração ou de distribuição dos excedentes nas economias mercantis - uma outra forma em que a força de trabalho pudesse ser reproduzida, que não por meio das relações de coopera-ção e solidariedade entre os membros da família. Estamos cientes da desigualdade entre o homem e a mulher que caracteriza as relações monogâmico-patriarcais, assim como a superexploração que a mulher sofre no interior desta instituição. sabemos perfeitamente que, graças à família, os regimes de classe, em geral, e o capitalismo, em particular, têm conseguido se reproduzir e reproduzir a força de trabalho necessária para a apropriação e a acumulação da riqueza. Sabemos também que a cooperação e a solidariedade entre os escra-vos entre os pobres podem ser perfeitamente usufruídas em função dos interesses da classe dominante - e neste caso em favor do capital. Sabemos igualmente que os fundadores e responsáveis por estas relações de cooperação e da solidariedade são os sentimentos que as mulheres nutrem pelas suas crias. E finalmente sabemos que até o amor tem sido subordinado ao mercado, mas o que queremos enfatizar é que este não tem conseguido subordiná-lo de uma forma mercantil.
E é o sentimento do amor que explica aquelas relações, como também explica a amizade ou as relações entre casais de qualquer tipo. São igualmente conhecidos os gestos de solidariedade e de cooperação entre camara-das que compartilham um projeto, uma luta, uma aventura; gestos plenos de sentimentos de amor por uma causa, um ideal, um compromisso. Se aqui assinalamos a família, é porque, nestas as relações de cooperação e solidariedade referem-se precisamente à distribuição permanente de bens materiais com critérios extra-econômicos, onde a entrega unilateral de um bem não espera nenhum bem material em troca, como leite com que a mãe alimenta o filho ou uma outra série de intercâmbios entre valores materiais por valores mo-rais, para além de acontecimentos conjunturais.
O amor entre amantes mostra o quanto um valor espiritual, cultural, isto é, não material, não econômico, é capaz de neutralizar e contradizer a lógica do intercâmbio de equivalentes entre bens materiais, e de contri-buir para que outros tipos de valores regule as relações de intercâmbio entre os seres humanos. Seria desejá-vel, então, que uma economia solidária com intenções de funcionar além da família, garantisse o seu funcio-namento e reprodução por meio de regras estritamente econômicas, como a distribuição de excedentes em uma cooperativa, mas que imbuísse de regras morais que pudessem alcançar, aos poucos, uma regularidade jurídica para impedir a exploração de uns pelos outros, até conseguir o status de um pacto social que não admita outro comportamento a não ser o da cooperação e o da solidariedade.
Desde os mais remotos tempos, os valores culturais têm provado sua força para ajudar a realizar tarefas sociais que contradizem os nossos interesses mateiais e que demandam, portanto, a participação desprendida da nossa individualidade humana. Dificilmente o cristianismo -ou aquilo de cristão que existe na civilização ocidental- teria conseguido elevar-se como conduta social, se não fosse pelos valores cristãos inculcados pela cultura religiosa. Poderíamos dizer o mesmo sobre os valores culturais do socialismo ou de qualquer outra causa; sem a crença de que as coisas têm de ser assim, a prática revolucionária ficaria vazia no seu caminhar. Sem a interiorização de um acordo social, a moral não seria superior à lei, nem o acordo teria tanta força. Um valor doutrinário, por sua vez , que não esteja encarnado em um corpo social, não tem maior validade ou transcendência. Marx disse, e com toda razão, que a ideologia converte-se em força material quando é incorporada pelas massas. E os novos movimentos sociais; feministas, ecologistas, religiosos, pacifistas, ocupacionistas e outros, são movimentos por sentimentos de cooperação e solidariedade, do mesmo modo que toda forma de luta pela liberdade e justiça é movida por causas e ideais, que em última instância tem a ver com o amor pelo outro e por si mesmo, mas através do outro.
Em outras palavras, se a cultura se a cultura ou a ideologia podem se transformar em força material enquanto vão se incubando na consciência popular, é preciso que o projeto e a estratégia e revolucionários - tanto nos seus aspectos políticos quanto nos seus aspectos políticos quanto econômicos - atravesse todas as formas culturais, amparando-se nelas, especialmente no que se refere aos símbolos e lemas para que o seu conteúdo seja identificado com facilidade. Em se tratando de revolução, os valores culturais sintetizan o conhecimento de todo um projeto a ser cultivado e consumido pelas grandes maiorias, até adquirir um grau de generalidade e se materializar em formas concretas, materiais e institucionais. Este conhecimento é transmitido e explicado com todas as suas partes até formar um corpo teórico e doutrinário que confira iden-tidade ao grupo ou à sociedade em todo o seu conjunto. Daí a importância dos estudantes, intelectuais, artis-tas, pensadores, jornalistas e outros profissionais; assim como da classe média, na qual geralmente são depo-sitadas, armazenadas e multiplicadas as categorias que surgem do casamento entre a prática dos processos e o processamento cultural. Este casamento, por sua vez, as converte em bandeiras com força própria. Lênin estava certo ao dizer que sem uma teoria revolucionária não há revolução. E Che teve muita sensibilidade ao afirmar que sem os sentimentos de amor não há qualidade revolucionária.
As idéias, os símbolos e todo o resto das formas culturais da revolução têm a vantagem de poder viajar, percorrer e atravessar todas as fronteiras, burlar quaisquer censuras, seduzindo os sentimentos e as paixões, até dos mais apáticos e cépticos, pela beleza das suas formas e, desta forma, conseguem chamar para si a solidariedade e o entusiasmo universal que os momentos revolucionários exigem. As formas cultu-rais da revolução, diferentemente das formas políticas e econômicas, e diferentemente do marco local ou nacional, são movidas dentro de um marco universal, sem limite de idade, sexo, religião, raça, localidade ou nacionalidade, escolaridade ou vocação.
Toda revolução nasce como um projeto, isto é, como algo que ainda não existe nem ainda teve a oportunidade de nascer. Portanto, a mensagem e a forma são sempre a premissa e a primícias de uma nova: é o ponto de partida da comunicação e da cumplicidade associativa entre os revolucionários: é o amálgama que dá coesão à relação e ao processo. No início, o projeto ainda que intangível, terá o seu melhor veículo de reconhecimento perante os sujeitos que o executarão nas formas culturais simbólicas ou emblemáticas, que serão as que traduzirão o seu conteúdo.