PAPEL CENTRAL DO TRABALHO E A ECONOMIA DE SOLIDARIEDADE
Luis Razeto M.
Neste artigo, se expõem um conjunto de convicções e idéias-força, de motivações intelectuais e axiológicas, que constituem a matriz fundamental de uma busca teórica e prática, pessoal e social orientada para desenvolvimento do papel central do trabalho e da economia de solidariedade. Nos últimos anos, tem havido uma renovação e uma intensificação na busca teórica e prática tanto em termos de pensamento criativo quanto na experimentação social concreta - de novas formas econômicas alternativas orientadas para encontrar e aperfeiçoar outros modos de fazer a economia. Estas buscas, cuja tendência é a de situar o trabalho acima do capital, de fazer predominar a solidariedade sobre o individualismo e o ser humano por sobre os produtos e os fatores materiais, podem ser expressas de forma sintética pelos enunciados: "papel central do trabalho" ou "centralidade do trabalho (CT)" e "economia de solidariedade" (ES). Falar de CT e de ES significa enunciar alguma coisa diferente do que já existe como realidade predominante nas economias e sociedades contemporâneas. Em ambas formulações fica muito explícito o distanciamento crítico das estruturas das economias vigentes, assim como a projeção de uma realidade diferente. Com ambas expressões enuncia-se um projeto ou, pelo menos, uma orientação teórica e prática fundamentalmente transformadora.
ENFOQUE CRÍTICO E TRANSFORMADOR
A economia atual não é solidária nem se manifesta
nela o papel central do trabalho. Ao contrário, analisando-a, deparamo-nos
com o predomínio e a centralidade do capital e do Estado. O trabalho
encontra-se em situação subordinada e periférica;
encontra-se diante de uma organização social na qual predominam
os interesses privados individuais e os interesses das burocracias do Estado,
dentro de um esquema de relações baseadas na força
e na luta, relegando para um plano totalmente secundário tanto os
sujeitos quanto as relações de cooperação e
de solidariedade. Desde a "grande crise" dos anos 30, sabemos
que não é possível a existência de um capitalismo
homogêneo que possa prescindir de uma dose consistente e substancial
da economia pública e estatal. A partir da derrubada do socialismo
real, sabemos que não é possível um estatismo homogêneo,
que possa prescindir a uma dose consistente e substancial da economia individual
e privada. Desde a "grande crise" dos anos 30, sabemos que não
é possível a existência de um capitalismo homogêneo
que possa prescindir de uma dose consistente e substancial da economia
pública e estatal. A partir da derrubada do socialismo real, sabemos
que não é possível um estatismo homogêneo, que
possa prescindir a uma dose consistente e substancial da economia individual
e privada. O que ainda temos que aprender é que em estas economias
mistas, nas quais o capital e o Estado convergem na subordinação
do trabalho e das relações de comunidade e de solidariedade,
estão longe de produzir respostas adequadas para as necessidades,
aspirações e fins dos seres humanos. Realmente, embora estas
economias se mostrem eficientes na geração de riqueza, também
o são na geração da pobreza. Mostram uma boa capacidade
para a produção abundante de bens, mas também são
potentes na produção de males. Se permitem que uma parte
das necessidades humanas sejam satisfeitas, dificultam e inibem a satisfação
de outras, dando lugar à uma qualidade de vida insatisfatória.
O SER HUMANO MERECE MUITO MAIS
O predomínio do capital e do Estado nas economias e sociedades modernas
e contemporâneas, por um lado, tem aberto um espaço para grandes
empresas e Estados poderosos, por outro, tem permitido também que
hoje exista uma maioria imensa de homens e mulheres inseguros, dependentes,
temerosos, insatisfeitos, sofredores, fracos e bastante infelizes. Não
me parece de difícil compreensão que a redução
dos seres humanos a esta situação lamentável se deva
ao capitalismo e ao estatismo. O trabalho é a atividade e principal
meio pelo qual o ser humano desenvolve as suas potencialidades, apossa-se
da realidade e a transforma de acordo com suas necessidades e fins, manifesta
e agrega a sua criatividade, abre o caminho para o conhecimento, humaniza
o mundo e se auto-constrói em níveis de subjetividade crescentes.
Mas, o capitalismo tem implicado no fato de que a maioria dos seres humanos
não tem acesso aos meios e recursos necessários para exercer
a atividade de trabalho com esse sentido tão pleno, de maneira que
possa empreender e desenvolver iniciativas que lhe permitam controlar suas
condições de vida e desenvolver seus próprios projetos
criativos. Ao reduzir o trabalho a essa situação subalterna,
o capitalismo impede que ele expresse sua riqueza de sentido e de conteúdos.
Se o trabalho fica reduzido ao emprego, o ser humano que o realiza é
apenas um empregado: um sujeito dependente, instrumental. O estatismo também
não ajuda a elevar o ser humano a sua condição humana,
porque nele o trabalho humano também é colocado em uma condição
subalterna. Ao ser colocado como um funcionário, um empregado do
Estado, o trabalhador também carece dos meios necessários
para empreender obras próprias de forma autônoma, nas quais
possa expressar e desenvolver suas potencialidades criadoras. Quando o
Estado cumpre funções empresariais excessivas e o âmbito
das suas atribuições é grande demais, os seres humanos
e as comunidades de trabalho têm muito poucas oportunidades para
desenvolver-se dentro de um marco amplo de possibilidades que o trabalho
proporciona. Ao reduzir o trabalho a essa situação subalterna,
o capitalismo impede que ele expresse sua riqueza de sentido e de conteúdos.
Se o trabalho fica reduzido ao emprego, o ser humano que o realiza é
apenas um empregado: um sujeito dependente, instrumental
EMPOBRECIMENTO DO TRABALHO HUMANO
A imensa maioria dos seres humanos tem perdido o controle sobre suas próprias
condições de vida, porque tem transferido para o empresário
capitalista ou para o Estado todas as iniciativas e capacidades de empreendimento.
Pelo empobrecimento e pela expropriação dos recursos de produção
e das capacidades de organizar, gerir e de tomar decisões a que
o trabalhador, as famílias, as comunidades e os grupos médios
têm sido submetidos, também tem havido um empobrecimento do
conteúdo cognitivo e tecnológico do trabalho de grandes multidões
de trabalhadores. O trabalhador desconhece os processos tecnológicos
nos quais participa, limitando-se à execução de atividades
sem compreender as relações e o significado delas no conjunto
do processo. Um grupo reduzido de seres humanos concentra os meios materiais
e financeiros da produção; outro grupo, pequeno também,
concentra a informação e o conhecimento dos processo tecnológicos
e científicos implicados na produção; as capacidades
para a tomada de decisões também se encontram concentradas
em poucas cabeças. Para a imensa maioria dos seres humanos, precisamente
aqueles que nós identificamos como trabalhadores, fica apenas a
capacidade de trabalho em geral, indiferenciada e parcial - e tudo que
eles podem fazer com ela é oferecê-la ao mercado para alguém
que deseje empregá-la. Para a imensa maioria dos seres humanos,
precisamente aqueles que nós identificamos como trabalhadores, fica
apenas a capacidade de trabalho em geral, indiferenciada e parcial - e
tudo que eles podem fazer com ela é oferecê-la ao mercado
para alguém que deseje empregá-la. Uma vez alcançada
a grande meta, a ansiada condição de empregado, o trabalhador
depende a vida toda do empregador, seja este empresário capitalista
ou o Estado. Este ser humano submetido, dependente, inseguro, temeroso
e fraco, sofrido e sofredor, se não tiver desenvolvido qualidades
especiais e energias de resistência moral e cultural que o levem
a se organizar, a participar de sindicatos, a comprometer-se com processos
políticos ou comunitários com fins superiores, geralmente
acaba se aviltando. E o que dizer do estado em que cai aquele trabalhador
que nem sequer chega à condição de empregado? Como
alguém pode ter uma boa auto-estima se ninguém está
interessado na sua força de trabalho, que é oferecida pelos
mais baixos níveis de salário? Do lugar mais fundo da miséria
e da marginalidade, há o começo de um processo surpreendente:
o lento redescobrimento do homem e da mulher que existe em cada um, mesmo
empobrecido e excluído da sociedade, e com ele, a valorização
das forças e das próprias capacidades para ser e para fazer,
de trabalhar e de empreender. Mas, este processo não acontece de
forma espontânea em um ser humano isolado, pelo simples efeito de
uma reação natural ao se chegar ao fundo do poço.
O caminho ascendente inicia-se com a chegada de uma força que em
definitivo constitui-se na mais poderosa das forças: a solidariedade
que liberta, criando vínculos de organização e de
comunidade. Do lugar mais fundo da miséria e da marginalidade, há
o começo de um processo surpreendente: o lento redescobrimento do
homem e da mulher que existe em cada um, mesmo empobrecido e excluído
da sociedade, e com ele, a valorização das forças
e das próprias capacidades para ser e para fazer, de trabalhar e
de empreender. É bem verdade que estas experiências de organização
econômica popular que surgem nos grupos mais pobres e excluídos
constituem apenas um início extremamente precário e fraco,
mas real, de formas econômicas solidárias nas quais o trabalho
assume posições centrais. O papel central do trabalho não
se busca como projeto, mas é motivado pelo fato simples e rasteiro
de que, nesta situação, o trabalho é o único
fator disponível, já que os outros fatores - meios materiais,
tecnologias, capacidades de gestão, financiamentos - são
tão escassos e pequenos que mal poderiam se constituir como centro
de qualquer coisa. É bem verdade que estas experiências de
organização econômica popular que surgem nos grupos
mais pobres e excluídos constituem apenas um início extremamente
precário e fraco, mas real, de formas econômicas solidárias
nas quais o trabalho assume posições centrais. Mas, o caminho
em direção à CT e à solidariedade econômica
não precisa começar desde tão embaixo. Para reverter
o processo de empobrecimento e de subordinação do trabalho
e da comunidade não é preciso esperar que a situação
se imponha com toda sua força redutora. O processo tem sido assim:
um grupo se apropria dos meios de trabalho, outro das capacidades de gestão
e de direção, outro dos conhecimentos tecnológicos,
etc. Na medida em que esta divisão social do trabalho vai se produzindo,
a maioria vai ficando com a capacidade de trabalho residual, que implica
no empobrecimento do próprio ser humano. Ao mesmo tempo, os vínculos
com a comunidade humana vão se rompendo porque os seres humanos,
com diversas potencialidades, relacionam-se em termos competitivos, conflitivos,
dando lugar a relações de força e de luta. Os seres
humanos empobrecidos não se relacionam na riqueza das suas qualidades,
mas na pobreza e na homogeneidade das suas carências. A sociabilidade
entre seres tão pobres e parciais não constitui comunidades,
mas massas. Os seres humanos empobrecidos não se relacionam na riqueza
das suas qualidades, mas na pobreza e na homogeneidade das suas carências.
A sociabilidade entre seres tão pobres e parciais não constitui
comunidades, mas massas. Reverter este processo significa avançar
na recuperação e na integração da riqueza dos
conteúdos do trabalho nas pessoas e nos grupos humanos reais. Mais
concretamente, trata-se de que o trabalhador volte a adquirir capacidades
para a tomada de decisões, que desenvolva conhecimentos acerca do
como fazer as coisas, que recupere o controle e a propriedade sobre os
meios de trabalho. Este processo de enriquecimento do trabalho implica,
simultaneamente, em um potenciamento progressivo do ser humano para a superação
da dependência, da sua precariedade extremada, da sua pobreza e da
sua insegurança. O ser humano vai se fazendo novamente na sua capacidade
de empreender, de criar, de trabalhar de maneira autônoma, de ter
o controle sobre suas condições de existência. Isto
não é possível de se verificar a não ser no
encontro entre os próprios seres humanos, na cooperação
e na formação de comunidades, nas quais o trabalho dividido
vai se recompondo socialmente. Nos desenvolvemos e nos enriquecemos uns
aos outros quando não nos vinculamos em termos de luta ou de conflitos
e sim dentro da reciprocidade e da solidariedade. O enriquecimento do trabalho,
condição para que este recupere o seu papel central, requer
um desenvolvimento das relações de cooperação.
É aí que se encontram os processos dirigidos ao papel central
do trabalho e à economia de solidariedade.
A RELAÇÃO ENTRE ECONOMIA E SOLIDARIEDADE
O que chamamos de economia de solidariedade não consiste em um modo definido e único de organizar unidades econômicas. Trata-se de um processo multifacetado através do qual incorporamos solidariedade à economia. Digo "incorporar solidariedade à economia" com uma intenção muito precisa. Estamos habituados a pensar na relação entre economia e solidariedade de uma forma diferente. Muitas vezes temos ouvido dizer que devemos nos solidarizar, como uma forma de mitigar alguns defeitos da economia ou de resolver alguns problemas que a economia não tem conseguido superar. Tendemos a supor que a solidariedade deve se realizar uma vez que a economia tenha cumprido com a sua tarefa e tenha completado seu ciclo. O tempo da economia vem primeiro, ou seja, o tempo para que os bens e os serviços sejam produzidos e distribuídos. Uma vez efetuada a produção e a distribuição, seria o momento da solidariedade para compartilhar e ajudar aqueles que ficaram desfavorecidos ou aqueles que mais precisam. A solidariedade começaria quando a economia tivesse terminado sua tarefa e função específica. A solidariedade seria colocada em prática com os resultados - produtos e serviços - da atividade econômica, mas a atividade econômica em si e seus produtos não seriam solidários. O que aqui sustento é diferente do que foi mencionado, isto é: que a solidariedade seja introduzida na própria economia e que opere nas diversas fases do processo econômico, ou seja, na produção, distribuição, consumo e acumulação. E que seja introduzida para que compareça na teoria econômica, superando uma ausência muito notória nesta disciplina, na qual o conceito de solidariedade não aparece de forma espontânea.
OS MOTIVOS E CAMINHOS DA ECONOMIA DE SOLIDARIEDADE
Sendo este o sentido, a direção e o significado do processo, podemos descobrir situações e motivos diferentes, que por sua vez constituem-se em vias pelas quais diversas pessoas têm acesso ou se aproximam para procurar alguma participação na ES e na centralidade do trabalho. A primeira situação à qual aludo, refere-se à pobreza, que tem aumentado imensamente nos últimos quinze anos, tanto no Chile quanto em toda América Latina. A distância que separa os ricos dos pobres tem crescido. Por outro lado, tem se verificado uma transformação na realidade da pobreza. A pobreza tem crescido na medida em que existe uma massa social de pessoas que têm sido excluídas do emprego e do consumo, depois de ter vivenciado algum nível de participação e de integração. Mas com esta situação, o mundo dos pobres também tem se enriquecido de capacidades e de competências técnicas e de organização, já que as pessoas têm permanecido ativas mesmo quando nem as empresas nem o Estado lhes dão uma ocupação. Tem se verificado o surgimento de uma imensa quantidade e variedade de atividades e de organizações econômicas, através das quais numerosos setores populares têm desenvolvido iniciativas pessoais, familiares, associativas e comunitárias com que têm gerado uma economia popular incrivelmente variada. Tem se verificado o surgimento de uma imensa quantidade e variedade de atividades e de organizações econômicas, através das quais numerosos setores populares têm desenvolvido iniciativas pessoais, familiares, associativas e comunitárias com que têm gerado uma economia popular incrivelmente variada. É o povo pobre e excluído que se tem ativado economicamente com a expectativa de satisfazer suas necessidades e abrir caminhos na vida. Tem feito isto não apenas por meio da oferta passiva de sua força de trabalho no mercado ou por meio da reivindicação dos seus direitos perante o Estado e os organismos públicos, mas pelo uso de suas próprias forças e recursos, e muitas das vezes se associando a outros e se organizando grupal e comunitariamente. A pobreza e esta economia popular que surge dela constituem o primeiro motivo que orienta a perspectiva da ES, porque os modos de desenvolver a economia que surgem do povo - de maneira espontânea ou por indução de agentes externos que o apoiam - não correspondem às formas de comportamento preconizadas pelas teorias econômicas convencionais. A pobreza e esta economia popular que surge dela constituem o primeiro motivo que orienta a perspectiva da ES, porque os modos de desenvolver a economia que surgem do povo - de maneira espontânea ou por indução de agentes externos que o apoiam - não correspondem às formas de comportamento preconizadas pelas teorias econômicas convencionais. De fato, observamos que pelo menos uma parte desta economia dos pobres dá lugar a comportamentos que não correspondem àqueles do "homo economicus" que as teorias neoclássicas supõem, mas sim a outros que expressam uma cultura que se dispõe a encontrar na comunidade e no entorno social mais próximo os meios necessários para viver. Esta economia popular solidária tem sido, e está sendo, capaz de também suscitar um movimento de solidariedade, do qual participam pessoas e instituições dispostas a colaborar com ela pela contribuição de recursos, idéias e trabalho. Nesta economia popular, o trabalho assume o seu papel central espontaneamente, porque as pessoas que organizam as unidades econômicas são trabalhadores cujo principal recurso e fator de investimento e de gestão é, precisamente, o trabalho. Valorar o trabalho próprio é o objetivo principal que define a racionalidade destas pequenas empresas de trabalhadores, onde o trabalho não está marcado pela forma assalariada, mas pela autonomia e pelo trabalho associativo ou em cooperação. Uma segunda situação, que assinala a necessidade de se introduzir mais solidariedade na economia e que também impulsiona a busca do papel central do trabalho, emerge do mundo do trabalho assalariado e dependente nas empresas privadas e públicas através das organizações tradicionais dos trabalhadores. Trata-se de questões como: incrementar a riqueza dos conteúdos do trabalho; melhorar as condições em que o trabalho se desenvolve; dar ênfase aos efeitos que o trabalho produz na saúde física e psicológica do trabalhador; buscar ativamente uma maior participação, começando por um maior acesso a crescentes níveis de informação; lutar pelo controle do processo de decisão em diferentes âmbitos, cuja repercussão seja direta sobre os trabalhadores; etc. Uma terceira situação, que propicia a elaboração prática e teórica da economia solidária, origina-se nos movimentos cooperativos e de autogestão. Por muitas décadas, ambos os movimentos têm levado adiante os principais processos de construção de formas econômicas alternativas, sociais e humanistas. Mas, embora esses movimentos tenham se estendido por todas as vertentes da economia e por todos os países do mundo, o cooperativismo e a autogestão têm apresentado muitos limites e situações de crise. Neste sentido, eles não têm conseguido se impor como sujeitos históricos autônomos dotados de uma capacidade efetiva de direção das mudanças econômicas e do desenvolvimento. Embora exista um consenso moral muito elevado a seu respeito, devemos reconhecer que se mantêm em um plano de subordinação a respeito das grandes tendências da economia e da política. Cabe aqui interrogar-se, então, acerca das potencialidades do cooperativismo e da autogestão, para que possam desenvolver forças próprias de resposta à crise econômica-social contemporânea e de transformação econômico-política. Isto exige ir de maneira profunda na investigação das causas que explicam o desenvolvimento parcial e os problemas que têm emperrado a sua expansão. Neste sentido, coloca-se a necessidade de se indagar de forma mais funda acerca de um possível desenvolvimento de novas formas econômicas que, dentro dos princípios e valores da cooperação e da autogestão, sejam mais eficientes para operar no mercado e nas economias atuais. Cabe interrogar-se, então, acerca das potencialidades do cooperativismo e da autogestão, para que possam desenvolver forças próprias de resposta à crise econômica-social contemporânea e de transformação econômico-política. A quarta situação que leva à busca de uma economia de solidariedade é a percepção que se tem de que na América Latina não temos conseguido nos enveredar por uma via de desenvolvimento eficaz. Dado o fracasso das estratégias conhecidas e aplicadas, é evidente a necessidade de buscar uma estratégia alternativa de desenvolvimento. Cada dia fica mais claro que há necessidade de que o aspecto alternativo não seja apenas uma estratégia, mas o próprio desenvolvimento que se busca. Primeiro, porque a pobreza em que são mantidas crescentes multidões não alude apenas a uma integração insuficiente a um processo dinâmico, mas à incapacidade estrutural da organização da economia para absorver a capacidade de trabalho e as necessidades de consumo dessa população marginalizada. Segundo, porque aquele segmento de nossas economias que tem conseguido crescer e modernizar-se manifesta evidentes perfis de unilateralidade, de maneira que mesmo aqueles que têm acesso a seus benefícios materiais não têm oportunidades reais para satisfazer outras necessidades e aspirações superiores da pessoa e da comunidade. Por isto, continua-se na pobreza e no subdesenvolvimento em termos das necessidades culturais, relacionais e espirituais, cuja satisfação exigiria outra organização da economia. A demanda por um desenvolvimento alternativo, que ofereça respostas a ambas formas da pobreza, é outra força que orienta em direção da solidariedade na economia. Cada dia fica mais claro que há necessidade de que o aspecto alternativo não seja apenas uma estratégia, mas o próprio desenvolvimento que se busca. A demanda por um desenvolvimento alternativo, que ofereça respostas a ambas formas da pobreza, é outra força que orienta em direção da solidariedade na economia. O quinto motivo (razão e via de acesso) para a busca de uma economia de solidariedade e do papel central do trabalho é a questão do problema e crise da ecologia, que se manifesta cada vez mais como uma questão econômica estrutural - parte de um problema mais profundo da civilização industrial, materialista e consumista em que vivemos. Os desequilíbrios ecológicos têm raízes no modo pelo qual se leva a cabo o intercâmbio vital entre o ser humano e a natureza, e que se verifica no trabalho e no consumo, ou seja, na economia. Um incremento da solidariedade no trabalho, na distribuição e no consumo está começando a ser percebido como uma forma eficaz para superar a vasta gama de problemas ecológicos que estão nos ameaçando. A última das motivações - e nem por isto menos importante - que levam a uma busca teórica e prática na perspectiva do papel central do trabalho e da economia de solidariedade é uma preocupação especificamente cristã. O campo das atividades e das estruturas econômicas é um âmbito onde entram em jogo e são postos em prova os principais valores e princípios humanistas e cristãos. De um lado, a pobreza extrema que afeta as multidões; de outro, o individualismo e a busca sem limite da riqueza material - enfim, os seres humanos submetidos às estruturas, leis e planos supostamente objetivos. A busca do papel central do trabalho - o trabalho como a "chave de toda a questão social"- e a construção de uma economia solidária erguem-se como tarefas fundamentais para aqueles que aspiram à evangelização da cultura, da economia e da política. Ao enunciarmos estas seis situações principais, que motivam a busca de uma economia de solidariedade, estamos indicando já os seus conteúdos e orientações mais relevantes, assim como as tarefas indispensáveis para a sua promoção. Entre estas gostaria de reiterar a importância do estudo, da reflexão e da indagação.
OVAS RELAÇÕES ENTRE A TEORIA, A PRÁTICA E A ÉTICA
Bem sabemos que nas diferentes teorias econômicas existentes, pouco tempo tem sido dedicado à cooperação e à comunidade, assim como o trabalho é considerado como variável subordinada. O papel que o processo em busca do CT e da ES tem como missão, portanto, é o preenchimento desse vazio. Mas, não se trata apenas de aplicar conceitos, fórmulas e modelos elaborados a partir de realidades econômicas tão diferentes daquelas que aqui nos interessam, já que, se seguirmos esse caminho, avançaremos muito pouco. Devemos assumir que realmente estamos procurando e espalhando uma racionalidade econômica diferente, cuja compreensão exige novos conceitos e uma nova teoria econômica. Devemos assumir que realmente estamos procurando e espalhando uma racionalidade econômica diferente, cuja compreensão exige novos conceitos e uma nova teoria econômica. Qualquer projeto de mudança precisa de muita reflexão, porque o esforço apenas prático e organizativo, sem o devido acompanhamento de uma elaboração e de um estudo que traga coerência, orientação e potencialidade às experiências práticas provavelmente deixaria o projeto em um plano subordinado. A reflexão e o trabalho intelectual são o que pode conduzir os movimentos e processos práticos para uma autonomia verdadeira, guiando-os de maneira a alcançarem uma realização mais eficiente e ampla, facilitando-lhes uma maior potência em si mesmos, legitimando-os socialmente, levando-os para um nível de coerência maior, proporcionando-lhes um fundamento conceitual indispensável. A partir do estudo, da reflexão e do intercâmbio de idéias acerca do trabalho e da economia de solidariedade é que emerge a possibilidade de uma profunda renovação da teoria econômica em geral. Mas não se trata de que esta tarefa fique exclusivamente nas mãos dos especialistas. Até porque, como já foi dito, os assuntos da economia são importantes demais para todos e, portanto, não é o caso de deixá-los só para os economistas. A partir do estudo, da reflexão e do intercâmbio de idéias acerca do trabalho e da economia de solidariedade é que emerge a possibilidade de uma profunda renovação da teoria econômica em geral. A ciência econômica não é uma disciplina autônoma, que contenha em si todos os elementos indispensáveis para o seu próprio desenvolvimento. Outras áreas do saber proporcionam-lhe bases e fundamentos para sua formulação. Assim, quando indaga acerca da racionalidade e se interroga sobre as necessidades e o bem-estar dos seres humanos, finca suas raízes na filosofia. Enquanto um saber que se refere às opções que os indivíduos, grupos e sociedades enfrentam, para os quais ela contribui com indicações normativas, ela convoca e recorre à ética e à axiologia. Quando estuda acerca do comportamento dos seres humanos, é preciso que procure fundamentos na psicologia social e na antropologia. Quando investiga processos e fenômenos de caráter fundamentalmente social, busca conhecimentos que a história, a sociologia e a política podem lhe proporcionar. Além de tudo isso, e como base de qualquer elaboração intelectual de qualidade, encontra-se a experiência humana, multifacetada e permanentemente enriquecida com novos elementos, refletida em diversos graus pelos próprios sujeitos que a estão produzindo, compartilhada em inúmeras conversas, encontros e ocasiões de todo tipo. A partir desta experiência é que emergem o pensamento e o conceito, e só tendo ela como referência é que o trabalho intelectual encontra o seu sentido. De todas formas, a ES não deverá surgir da reflexão pura nem só do estudo, como também não surgirá da experiência apenas prática, por mais intensa que ela possa ser, e sim da união mútua e enriquecedora de ambos os aspectos. Na época moderna tem se falado tanto da união entre a teoria e a prática, mas talvez nunca antes estas tenham transitado por caminhos tão separados. O que costuma ser esquecido é que o nexo entre teoria e prática não é inerente à teoria ou à prática em si mesmas, é mais um vínculo ético. É sabido que a unidade de teoria e prática requer autenticidade, compromisso, conseqüência. Atrevo-me aqui a agregar que o nexo que une teoria e prática é um vínculo profundo de solidariedade, que é construído quando existe a cooperação entre as pessoas envolvidas em uma prática, uma experiência e um ideal compartilhados. Pelo próprio fato de ser um vínculo ético, a união entre teoria e prática, é uma tarefa eminentemente política. É na atividade política onde podem se dar importantes passos para vincular experiências práticas de tantas pessoas, grupos e organizações de base com elaborações intelectuais realizadas por aqueles que sistematizam essas experiências e as projetam no pensamento, na ciência e na cultura. Por meio de uma mediação política apropriada, a teoria e a prática da economia de solidariedade e do papel central do trabalho poderiam se converter em um projeto histórico. É uma tarefa que não pode ser desenvolvida por consciências mesquinhas ou vontades fracas, pois exige espíritos abertos e generosos. Os que vierem para assumi-la e para iniciá-la serão os verdadeiros pioneiros e fundadores desta civilização da solidariedade e do trabalho, que as últimas formulações do ensino social da Igreja vêm nos chamando a assumir insistentemente.